O COMPLEXO DE AGAR

Chamemos, por conveniência, de “complexo de Agar”, uma síndrome que inclui, com freqüência, uma sensação de onipotência, de poder agüentar e segurar a barra de outros quase sem auxilio e de segurar a própria barra sem qualquer auxílio. Essa atitude deixa a pessoa muito vulnerável, seja aos espíritos negativos, aos demônios ou à doença mental, dependendo do ponto de vista de quem a analise. Com freqüência inclui aqueles que ajudam muito ao próximo e nada a si mesmos. A negação da sua própria vulnerabilidade o define. A onipotência é parte do complexo.
A inspiração para esse termo veio durante uma palestra num centro espírita, baseada em mensagem psicografada por Chico Xavier em 1943. Mesmo sendo católico, atendo serviços religiosos em diferentes denominações e sonho com o dia em que todas as igrejas do bem trabalhem juntas pelo bem.  Agar amava e ajudava o próximo, mas precisava e não buscou ajuda: se suicidou aos 33 anos.
A fé católica alerta sobre a tentação do suicídio. Nem os santos escapam: Elias pediu a Deus que o levasse; a tentação de St­o. Antonio foi elegantemente descrita por Flaubert. Porém, a postura da Igreja é clara como se lê na primeira carta aos Coríntios: “Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de Deus, que sois vós, é santo.”(3: 17). O suicídio é visto como uma forma de homicídio. Talvez por isso, a relação negativa entre religião e suicídio, particularmente entre o catolicismo e o suicídio, seja uma das mais conhecidas.
Passando para os olhares das pesquisas psiquiátricas, sublinho duas doenças mentais, freqüentemente relacionadas, mas não iguais, que aumentam o risco de suicídio. Harris e Barraclough demonstraram que, na Grã Bretanha, o risco de suicídio das pessoas bipolares era quinze vezes o da população total. É um aumento gigantesco. Alguns dados sobre a bipolaridade ajudam a entender o peso que os que enfrentam essa doença carregam, sobretudo se não se tratam: poucos têm, apenas, um episódio de mania. Noventa por cento têm mais de um. Sem tratamento, a média é de oito a dez episódios sérios durante a vida. Entre os episódios, os sintomas diminuem, mas em um entre cada quatro casos os pacientes continuam instáveis e com depressão leve ou moderada.
O suicídio não é a única conseqüência negativa e mensurável da bipolaridade: mulheres bipolares perdem, na média, nove anos na expectativa de vida, doze anos de saúde normal e quatorze anos de produtividade, incluindo não apenas as grandes crises, mas as minicrises e depressões do quotidiano.
Tudo muda com o tratamento. Baldessarini, Tondo e Hennen afirmam que o tratamento reduz dramaticamente o sofrimento e o risco de suicídio, que é oito vezes menor do que o dos bipolares que não se tratam. O tratamento dá certo, mas deve ser permanente, “para sempre”. Porém, um dos comportamentos mais comuns e perniciosos é suspender o tratamento quando o paciente, julgando por alguns sintomas, “acha” que está permanente ou momentaneamente curado e o interrompe. A maioria dos bipolares interrompe o tratamento após um ano. Há, nisso, um dos componentes do Complexo de Agar, que consiste em se adjudicar o conhecimento e o direito de decidir seu próprio tratamento, particularmente quando termina uma etapa depressiva.
A depressão, outra doença mental, é mais comum e menos letal.  Sane estima que na Grã-Bretanha 3 a 4% dos homens e 7 a 8% das mulheres enfrentam uma depressão moderada ou séria em algum momento da vida. Porém, as estimativas da incidência e da prevalência de depressão variam muito de país para país. Weissman, Bland e Canino estudaram dez países e as taxas de depressão séria variaram entre 1,5% em Taiwan e 19% em Beirute. Entre as muitas diferenças, duas semelhanças: a idade da primeira experiência depressiva (concentrada entre 25 e 35 anos) e as taxas femininas são mais altas do que as masculinas.
A depressão também aumenta o risco de suicídio. Na Irlanda, segundo Patrick McKeon, o risco na população total é de 1,3% (em toda a vida), ao passo que entre os que sofrem de depressão profunda é de 6% - um paciente em cada 17.
Kessing , Agerbo e Mortensen trabalharam dados dinamarqueses e pesquisaram que tipo de acontecimentos estressantes podem provocar internações por razão psiquiátrica relacionada à bipolaridade. A morte de um familiar aparecia, intuitivamente, como uma forte razão. Descobriram que não era, exceto as mortes por suicídio. Ou seja, as pessoas, inclusive as bipolares, lidam com a morte de seres queridos, mas não com a morte por suicídio. O suicídio deixa uma esteira de sofrimento e pode levar a outros suicídios. 
Para os que crêem no espiritismo, os suicidas têm consciência da destruição que causaram: “E seu coração carinhoso pode avaliar com que lágrimas venho lavando o remorso de não ter pensado mais, diz Agar à mãe” E, há reconhecimento do perdão, ainda que não merecido: “todavia, também sei que sua alma generosa me perdoou setenta vezes sete vezes.”
Um perigo cerca as pessoas cuja vida ou profissão consiste em ajudar outras pessoas. São muitas profissões e atividades que caracterizam os caregivers. As doenças degenerativas e irreversíveis são as mais pesadas para quem cuida dos pacientes.  São muitas.
Devido à necessidade de cuidado permanente e à redução ou falta total de recursos, o tratamento pode começar nos hospitais, mas, esgotadas as economias, acaba ficando nas mãos da família, cujos membros não foram treinados para tal. A filha de um casal, Lisa, descreve como a saúde mental da mãe deteriorava pari passu com a saúde física do pai. Mais e mais deprimida, a mãe deu sinais, repetidas vezes, falando do seu desejo “de ir embora e não voltar nunca mais”. Expressão relacionada com fuga, deserção, mas também com suicídio. O que alertou Lisa para essa possibilidade foi o suicídio “inesperado” de um sobrinho. Tinha dado muitos sinais, mas ninguém viu. Lisa se conscientizou a partir daí. Leu, e aprendeu que os caregivers profissionais são aconselhados a tirar férias, fazem rotações e se afastam quando a barra fica pesada demais, mas os familiares têm pouca margem para manobra. Como tirar “férias” do pai, parceiro ou filha doente? O envolvimento de Lisa talvez tenha salvo a vida da mãe. Deu o alerta que faltava.
A construção de uma rede de proteção para detectar e tratar casos de depressão e de bipolaridade pode ser um dos procedimentos mais difíceis e necessários para tratar com esses problemas na população. Se os pacientes não buscam o tratamento, é importante que o tratamento busque o paciente.  Rihmer, Rutz e Pihlgren desenvolveram um programa na pequena ilha sueca de Gotland. Treinaram os agentes de saúde, inclusive médicos privados, a detectar os sintomas de bipolaridade e de depressão, tratando-os com medicamentos. O resultado foi uma expressiva baixa na taxa de suicídios femininos, mas não masculinos. Em muitos lugares programas preventivos reduziram significativamente as taxas. Idealmente, essa rede de detecção e proteção pode ser ampliada de maneira a incluir professoras, policiais, familiares e mais. Porém, o treinamento de todo o sistema de saúde para esse fim está muitas décadas de desenvolvimento institucional adiante de nós.

GLÁUCIO ARY DILLON SOARES

IESP/UERJ

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